quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Oslo, 31. august, Joachim Trier



Segunda longa-metragem do realizador norueguês, depois da sua estreia, em 2006, com Reprise – que já contava com o actor Anders Danielsen Lie – esteve em competição no Lisbon & Estoril Film Festival’11.
Trabalho sobre a (im)possibilidade da escolha, sobre o arrependimento e a (in)capacidade de nos relacionarmos com segundos, sem os desiludir.
Anders é um ex-toxicodependente com demasiado tempo e poucas ambições. Dada a sua disponibilidade e amabilidade, escuta aqueles com quem se cruza, porque sente já não ter nada para contar. O som está tão magistralmente trabalhado que quase parece que ouvimos com os seus ouvidos, como quando escuta conversas separadas num café ou quando sai para a rua e, em vez de ouvirmos os carros que cruzam a estrada, continuamos absortos no seu mundo interior, que transporta demasiados pensamentos para se concentrar no meio ambiente.
O tema é pesado, mas os planos são belos, limpos, dotados de uma fotografia exemplar que nos acaricia o desconforto. Mesmo o último plano, apesar de dramático, contém uma certa dose de poesia.
Há também espaço para os pequenos gestos. Os primeiros vinte minutos são dedicados à longa conversa que tem com o amigo, com piadas sobre Proust à mistura, onde percebemos a intenção do personagem, para onde o filme caminha, mas isso é de menor importância, pois o que conta não é o destino, mas a viagem.
30 de Agosto é o dia em que Anders se despede da sua cidade e dos seus amigos, recorda conversas de outros tempos, e de algum modo responsabiliza os pais pela sua situação. O dia seguinte é aquele em que vê o sol nascer e lhe sorri, toca piano e se entrega ao seu mundo interior. A câmara mostra-nos os lugares que visitou no dia anterior, a vida que continua para além das pessoas que partem.
Anders Danielsen Lie protagoniza o filme notavelmente, sempre de cara crispada, deixando escapar sorrisos desmaiados em algumas ocasiões, como quando vai à pendura na bicicleta, numa das cenas mais belas do filme. O seu personagem é um desistente, recordando ao amigo o que este uma vez lhe disse: “Aqueles que se querem auto-destruir não devem ser impedidos pela sociedade”. Ninguém quer que Anders parta, mas ninguém acredita na sua recuperação. A irmã está tão amedrontada com a sua saída da clínica de desintoxicação que nem consegue encontrar-se com ele, mandando a namorada no seu lugar. Os pais estão em Nice a passear. O amigo diz-lhe para se encontrarem numa festa, na qual nunca aparece. Todos esperam, envergonhados, o dia em que a espera termine. É por isso que não o conseguem encarar. Porque não é só o fado que é trágico. A ignorância e a possibilidade de escolha também não são pêra doce.

sábado, 18 de agosto de 2012

The Future, Miranda July




Have you ever been outside?

Um casal na casa dos 30 vive num apartamento colorido e caótico, cada qual agarrado ao respectivo macbook, quando decide adoptar um gato a quem só resta meio ano de vida. Os dois parecem certos de que será um grande feito dar parte das suas vidas a um animal indefeso que deles precisa para sobreviver – e de quem eles precisam para se sentirem grandes. Só que, afinal, com algum jeitinho, o gato pode durar uns bons 5 anos aos seus cuidados, e aí a coisa começa a pesar-lhes. Vejamos: quando o gato morresse, já teriam 40 e já nada poderiam fazer com as suas vidas, porque dos 40 aos 50 é um dia e depois dos 50 acabou. Por sorte, o felino está nos cuidados intensivos e lá terá de permanecer por um mês. É então que o casal decide largar os empregos e fazer algo com propósito e significado durante os 30 dias de liberdade, porque, está mesmo a ver-se, o gato vai ser um fardo, assim mais ou menos como um filho. A ideia era ser uma espécie de preparação para o próximo nível – o filho, entenda-se – mas 5 anos – e tendo em conta que depois dos 50 não há nada a fazer – é um tempo consideravelmente longo.
Sophie (Miranda July), professora de dança para crianças, está obcecada com o sucesso que o vídeo de uma colega fez no youtube, e o objectivo de vida dela – sendo a vida esses 30 dias – é gravar uma coreografia por dia e pô-la online, de modo a ser reconhecida. Claro que a sua obsessão com o vídeo da outra e o seu estilo totalmente distinto, atrofia-a, frustra-a e impossibilita-a de levar o projecto avante. Necessitando estabelecer contacto com alguém, envolve-se com um desconhecido que até não se importava de partilhar a vida com ela, e Sophie responde-lhe: “If you watched me all the time I wouldn’t have to do anything”. Ou seja, atingido o objectivo, perde-se o encanto. Só não o alcançando se continua na estrada, a desbravar terreno.
Sophie falha completamente na sua descoberta. Não a vemos crescer, nem iluminar-se, nem mudar de atitude, nem conseguir o que queria, que não sabemos o que é, porque ela também não. É uma mulher perdida na inércia, com o relógio biológico a dar horas e com a força e o medo do instinto maternal a bater-lhe à porta. Em casa sentia-se protegida, sem grandes distracções ou atracções, mas agora, fora do seu forte, descobre uma parte adormecida dentro de si - a selvagem: “I have to tell you something. One thing is that I’m wild.” Tudo o que faz é irresponsável, despropositado e em nada preenchedor, mas, no final, arca com as consequências e, pelo menos, fica a saber o que não quer.
Jason (Hamish Linklater), por seu turno, é um pouco mais altruísta nas suas escolhas, escolhas que advêm de uma premissa maior: o estar atento e alerta para o que o mundo tem para lhe oferecer e que ele lhe pode devolver. Rompendo com o seu emprego de apoio técnico informático, junta-se a uma organização ambientalista e vai de porta em porta tentar vender árvores. Não é, no entanto, em nenhuma dessas portas que encontra uma ligação, mas sim na porta onde vai comprar um secador para Sophie, onde faz um amigo com quem almoça e escuta, enquanto a namorada está com o amante e dá por si escondida dentro da sua camisola protectora, incapaz de compreender e dominar as entranhas.
A grande revelação de Jason acontece quando pede a Sophie para se calar, no momento em que esta se prepara para dizer algo que vai mudar o rumo das suas vidas. Com a entrega e aprendizagem a que Jason se submeteu durante o mês, consegue parar o tempo para reflectir sozinho. Mas o seu amigo – a lua – está a olhar por ele e ajuda-o a descobrir dentro de si a aceitação. Quando Jason restabelece o compasso do tempo, os dias passaram, só ele é que os perdeu. A vida para além dele continuou o seu caminho. Jason nunca chega a escutar o que Sophie tinha para lhe dizer, assim como Paw-Paw, o gato, nunca é resgatado pela família de acolhimento, porque os seus ‘pais’ estavam demasiado ocupados a gastar os últimos cartuxos antes de o terem a prendê-los. Mas Paw-Paw também encontra a aceitação e leva-nos a meditar sobre a mortalidade e a eternidade: “Living is just the beginning”.
Sophie e Jason não mais encontram o caminho de casa - “This is a totally new land now” – mas podem ter encontrado o seu próprio caminho. Não chegam à meta que estabeleceram – Paw-Paw - mas talvez essa meta não lhes estivesse destinada. E quem sabe o buraco que Gabriella cava é o fosso cada vez maior entre Sophie e Jason, ou a cova de Paw-Paw ou o buraco do Universo, onde todos mergulhamos um dia.
The Future é um excelente exercício sobre o pânico dos trintões que estudaram para ter um emprego satisfatório, mas os anos passam e esse dia não chega, e então há que se conformar com o que se tem e pensar em constituir família ou mandar tudo à fava e fazer umas quanta loucuras, enquanto ainda há tempo.
Outra característica curiosa prende-se com as semelhanças físicas entre Sophie e Jason, com os seus cabelos encaracolados, reflectindo sobre a possibilidade de pessoas que partilham o mesmo espaço durante muito tempo se começarem a parecer – e a perder a individualidade.
O mundo de July é muito particular e não costuma ser recebido com meias medidas: ou se gosta muito ou não se gosta nada. Mas até os haters conseguem distanciar-se e dar-lhe, pelo menos, o mérito de criar uma atmosfera própria para personagens singulares com uma pitada de magia e fantástico que pode ir desde uma camisola com vida própria, um gato e uma lua que falam ou poderes sobre o tempo.
July segue assim o traço de realizadores como Wes Anderson ou Noah Baumbach. É difícil ficar indiferente a qualquer um deles.

sábado, 12 de maio de 2012

O monte dos vendavais



Todos nós conhecemos a história clássica de Cathy e Heathcliff, do romance de Emily Bronte, publicado em 1847, ou quanto mais não seja da música da Kate Bush - How could you leave me when I needed to possess you? I hated you, I loved you too. Arnold filma a paixão entre os dois irmãos emprestados através dos instintos mais básicos e primitivos do ser humano. Os dois jovens lutam, despem-se, tocam-se, esfregam-se, olham-se, cheiram-se, e não trocam uma palavra porque o seu entendimento vem de algo anterior, apenas existente no plano sensorial. Eles são o mundo que os envolve - os cavalos velozes, o vento, a chuva, o sol, as penas, os frutos - e a tempestade que assola o monte diariamente é a que corre nos seus corpos. A câmara de Arnold segue os personagens, anda atrás deles e deixa que sintamos o seu cheiro, porque é assim que eles se reconhecem, como animais selvagens. Quase não existe banda sonora, a não ser as músicas tradicionais que Cathy canta, o vendaval e a balada dos amantes renegados, no fim, composta pelos Mumford & Sons, que se intitula, exactamente, The Enemy. Heathcliff chega ali como um estrangeiro e é olhado com um misto de atracção e repulsa. As sensações que a sua presença despoleta instalam a desordem, e um caos fundamental abate-se sobre aquele lugar, fazendo com que todos se tornem escravos uns dos outros e de si próprios. Não há salvação possível porque todos são cúmplices do pecado primordial que o rapaz negro representa. Ele é o adversário e o fruto proibido. Assim, um a um, pagam a rejeição: primeiro o pai, depois o filho, Cathy e finalmente Heathcliff, o fantasma que lá permanece a agonizar. 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Aos crocodilos mete-se-lhes um pau na boca




Tabu é o monte de uma colónia portuguesa em África, no principio dos anos 60. Lá se instalaram jovens ricos e aventureiros que se divertem com corridas de automóveis, caçadas, bailes e festas. O amanhã é coisa que não lhes tira o sono, até que uma barriga começa a crescer - e com ela o peso de um amor ilícito – e um assassinato despoleta a revolta dos locais. Mas antes de Tabu há um prédio em Lisboa onde vivem três senhoras sozinhas que cuidam umas das outras porque na velhice não há muito que fazer. Uma delas está senil, mas é a que tem mais memórias. As outras não tiveram tempo para as construir porque passaram a vida ocupadas a tratar dos outros – uma porque era Santa e escrava, a outra porque queria ser santa e activista política. É então a velha senil, Aurora (não a de Puiu, mas a de Murnau) que as encaminha até uma floresta artificial num qualquer centro comercial onde vão escutar uma história: a sua e a do monte Tabu. É o homem que Aurora lá conheceu que a conta, enquanto nós a vemos decorrer com os sons da selva, dos carros, dos animais, dos tiros, da água, das músicas, mas sem nunca ouvirmos as palavras que os personagens trocam à nossa frente. Tudo o que temos são as memórias de Aurora – da aurora, da juventude, do paraíso - contadas pelo seu grande amor, com quem desenhava animais nas nuvens, passeava na savana e fazia amor clandestinamente. Esses foram os dias de paraíso, onde os meses passavam a voar. Depois veio a fuga, a deles e a dos retornados, dos dias que não sabem para onde ir e se arrastam sem um propósito. Mas África continuou presente na arquitectura, na decoração e na Santa que não fala porque cada macaco no seu galho. No monte Tabu os macacos andavam à solta, os crocodilos fugiam para o quintal dos vizinhos e eram tratados como filhos por quem não os podia ter. Antes a vida fazia-se de emoções pungentes e histórias exóticas. Depois cresce-se, parem-se crocodilos e crias, matam-se inocentes e escrevem-se cartas de amor que ficam por ler.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Minnie and Moskowitz (1971) John Cassavetes


Com pouco tempo para aqui vir, para aqui estar, não podia passar ao lado de Minnie and Moskowitz, que vi há poucos dias. Um amor sem razão, de total absurdo, não nasce, mas move-se, entra e sai deles e da vida deles. Gostam/não gostam, querem/não querem, não temos nada em comum/que se dane. Como se o amor não precisasse de nada para existir, apenas há ou não há. Amor, não, que isto é paixão assolapada, daquelas mesmo só dos filmes, mas não tem flores, nem beijos com língua, nem olhos a cintilar, nem palavras bonitas. É só a vida, a paixão como ela é mesmo: gritos, pancada, choradeira, álcool e desespero. A coisa não se faz por menos e o amor é fodido, tão fodido, que mais vale agarrar-se logo a pessoa mais incompatível que existir, ter um bando de filhos e deixar a vida acontecer. Moskowitz não é especialmente bonito, nem educado, nem rico, mas está capaz de fazer qualquer loucura por Minnie. E ela não quer, mas depois até gosta. Ela só quer alguém que cuide dela. Moskowitz dá-lhe isso, mas sempre de forma trágica e dolorosa, estilo faca e alguidar, tão necessário para manter a chama acesa. Porque o amor quer drama. É mais bonito, não sei. Nem importa. Deu-me para isto, também não sei porquê. O que interessa mesmo é a câmara de Cassavetes que não filma quem fala, mas quem ouve, que não se demora no acessório, no enchimento do chouriço, e apenas no essencial, que dá espaço aos personagens para se movimentarem, que não usa a fórmula tradicional, não mostra tudo o que acontece, todas as reacções dos personagens, antes as dá a entender através da expressão dos outros. É de génio. É a fórmula em que Canijo se tem baseado. Que não dá nada de mão beijada e que torna as possibilidades infinitas. Este filme tem tudo para ser perfeito. É um absurdo com conhecimento de causa. Uma percepção nítida da impossibilidade de amar para a vida. Pega no casal mais paradoxal de todos os tempos e faz as coisas acontecerem. Resultou. Na vida não resultaria, não haveria 5min de hipótese. Se calhar é aí que começa o erro. Mas que importa?

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Fish Tank (2009) Andrea Arnold


Um pouco a propósito do Michael Fassbender, vi finalmente o filme de que a Ana me falou há uns meses. A história inspira-se na curta-metragem Wasp, filmada em Dratford, pela qual a inglesa Andrea Arnold recebeu um Óscar. Depois foi até Glasgow filmar a sua primeira longa – Red Road - que a distinguiu no cenário britânico e arrecadou o prémio do júri em Cannes. Três anos mais tarde estava em Essex pronta para dissecar as entranhas da família suburbana, à maneira de anatomistas maiores como Mike Leigh e Ken Loach.
Fish Tank apresenta-nos Mia (Katie Jarvis), uma jovem adolescente de 15 anos com os serviços sociais à perna, por ter partido o nariz a uma rapariga, numa luta de bairro sem importância. Vive com a mãe alcoólatra e desempregada e com a irmã mais nova, num pequeno apartamento de um conjunto de prédios de reinserção social. O seu único interesse é dançar, mas os seus passos são ainda tensos e pouco confiantes.
Tudo nos é apresentado sob o seu ponto de vista. Estamos sempre ao lado dela, em casa, na rua ou no apartamento vazio onde ensaia - espaço de intervalo à contínua guerra que trava consigo e com o mundo. O que Mia tem de forte, também tem de vulnerável. Quer ser livre e estar sozinha, mas também quer sentir-se segura e amada. Incapaz de compreender e controlar a fúria, o desejo e o medo, constitui um quebra-cabeças para si própria. Todas as contradições características da adolescência são retratadas com extrema autenticidade.
Quando a mãe leva para casa o novo namorado, o ambiente familiar leva uma injecção de ordem e boas maneiras. Connor (Michael Fassbender) é divertido, atencioso, educado e até tem um emprego. Mia vê nele um pai ou um irmão mais velho, alguém que se preocupa – ao contrário da mãe, sempre bêbada ou de ressaca – e que a apoia no seu sonho de vir a dançar. Mas ela não sabe como expressar o afecto porque nunca o recebeu. Por isso, quando Connor se aproxima, Mia carrega o seu sistema de defesa pessoal, mas existe uma clara empatia entre eles. A rapariga está sobretudo fascinada. Nunca se tendo deparado com uma figura masculina tão prestável, embarca numa experiência de descoberta perigosa e excitante.
Bem vistas as coisas, Connor é bom demais para ser verdade. Não faz sequer sentido namorar com a mãe de Mia porque são dois seres antagónicos. O seu papel no seio daquela família começa a ser difícil de definir e perguntamo-nos até que ponto será assim tão bonzinho. Quando Mia descobre a verdade, a sua adoração transforma-se em ódio e, determinada a passar por cima do sucedido, decide à pressão fazer um jogo demasiado arriscado, para o qual não está preparada. A sequência de perseguição no terreno baldio é decisiva para ela, pois é aí que percebe até onde as circunstâncias a podem levar. Segura de não querer ser essa pessoa, vai-se embora daquele lugar, de onde nada de bom sairá.
No final, a dança com a mãe transparece optimismo. Arnold não quer passar uma imagem miserabilista, inclusive filmou no Verão para que o sol brilhasse em quase todas as cenas. Evita também quaisquer juízos de valor e explicações desnecessárias, especialmente na relação de Connor e Mia.
A performance de Katie Jarvis (distinguida com vários prémios) é extraordinariamente convincente, principalmente para uma actriz não profissional – foi o seu único papel até à data - e Fassbender tem mais um desempenho sem quaisquer pontas soltas. O filme recebeu também o prémio do júri em Cannes.

O mais recente filme de Arnold, Wuthering Heights, é baseado no romance de Emily Bronte, de 1847, e foi apresentado em Veneza, no ano passado. Conta com Kaya Scodelario da série Skins.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Shame, Steve McQueen


Uma Nova Iorque escura e depressiva por onde um executivo de uma empresa qualquer – não sabemos de que área se trata – vagueia à noite com o intuito de satisfazer os seus ímpetos carnais. Um apartamento pequeno, com vidros altos que deixam entrar as luzes da cidade, onde recebe mulheres ou vê pornografia, quando a noite de engate não supre o efeito desejado. O engate é subtil e vive do olhar. Brandon é homem de poucas palavras e a sua figura permite-lhe ter confiança suficiente para fazer esse jogo. O efeito pretendido consiste em neutralizar a dor, por ventura plantada há muito, num lugar como a Irlanda, onde nasceu, ou Nova Jersey, onde foi criado – locais mencionados pela irmã (“We’re not bad people, we just come from a bad place”).
A rotina diária de Brandon começa com masturbação no duche, enquanto deixa correr os recados tempestuosos de Sissy no atendedor de chamadas. No metro, vai a comer com os olhos a mulher mais atraente que encontrar, que facilmente lhe retribui o entusiasmo. No escritório, ao ver o seu computador ser mandado formatar por causa dos vírus – com as toneladas de pornografia lá enfiadas - masturba-se na casa de banho, e à noite, quando não está por sua conta, é arrastado até bares pelo patrão, que, casado e pai de filhos, precisa de se distrair.
Sem obter respostas, Sissy aparece-lhe no apartamento para deitar por terra todo o seu esquema tão bem organizado. Visivelmente transtornado com a sua chegada, Brandon sente-se desconfortável ao seu lado e afasta-a, incapaz de aceitar o seu afecto. Sissy, pelo contrário, procura contacto e exterioriza a sua frustração. Num acto puramente imaturo e provocatório, envolve-se com o patrão do irmão na sua própria cama. Furioso, Brandon veste o facto de treino e corre durante uns quantos quarteirões numa cena de beleza incomensurável, filmada num único take. Mais tarde, Sissy tenta infiltrar-se na sua cama, mas ele rejeita-a com ferocidade. Também o apanha na casa de banho a vir-se em frente ao espelho, mas nunca o recrimina ou faz julgamentos sobre a sua vida sexual, que parece conhecer bem e compreender como uma espécie de escape ou tranquilizante a que o irmão se agarra. Ela foi para o ajudar, mas não consegue porque, como o próprio lhe diz, nem sequer sabe tomar conta dela, o que faz com que ele tenha de se preocupar e desconstruir todo um sistema de defesa imperturbável - "You're a burden. You're just dragging me down."
À medida que Brandon se apercebe do fosso que criou com o mundo, tenta relacionar-se saudavelmente com uma mulher. Leva-a a jantar a um restaurante onde se sente um outsider, incomodado pelo empregado de mesa que lhes faz variadíssimas sugestões, quando Brandon não podia interessar-se menos com o que vai comer. Ele está completamente fora-de-jogo, não sabe como interagir com Marianne, e enquanto a leva ao metro conversam sobre sonhos perdidos. Brandon queria ter sido pianista e viver numa outra época, daí os vinys de música clássica que escuta sozinho em casa. (Fica patente a valorização de tudo o que é oposto ao que o rodeia, à parafernália de corpos, objectos e informação. Mas, como todos nós, deixou-se engolir pela era da web, do acesso fácil, do descartável, do consumo desregrado.) Na tarde em que se envolve com Marianne, sofre de disfunção eréctil, porque ao gostar dela não consegue pensá-la como objecto sexual e é-lhe impossível tirar prazer de outra forma que não a do sexo descomprometido e maquinal. O amor está a milhas do cenário que criou.
A partir daí, enterra-se no seu próprio calvário: mete-se, propositadamente, com a namorada de um tipo que lhe marca a cara, entra num bar gay e deixa que um homem lhe faça sexo oral, convoca uma orgia com duas mulheres, impecavelmente filmada, onde assistimos ao seu desespero, quando o sexo deixou há muito de ser um prazer e se tornou um escape. Na verdade, Brandon não quer estar ali, mas essa é a única coisa que sabe fazer para fugir de si mesmo. Nessa cena, vemos um corpo a tentar matar qualquer resquício de alma, memória, e o orgasmo é a apoteose do seu sofrimento atroz. Mal ou bem, ele vive para o seu vício e se a princípio o sexo lhe aliviava a angústia, agora alimenta-a, como se o orgasmo fosse o elemento catártico de um peso que carrega silenciosa e secretamente consigo e só naquele momento exterioriza.
Apesar do personagem principal ser viciado em sexo, o sexo que McQueen filma é extremamente seco, frio, sem ponta de sensualidade, exactamente como Brandon o sente, e isso vai-se adensando ao longo do filme. A música que Harry Escott compôs e a maravilhosa fotografia de Sean Bobbit - já conhecida de Hunger – imprimem relevo e consistência à experiência de absoluto desconforto e inquietude. Há muitos corpos nus no filme, mas o que corre dentro dos personagens nunca é revelado, apenas temos acesso ao exterior, porque não são capazes de dar mais (ou não têm ninguém que os ouça, no caso de Sissy). Quando a irmã comete um acto impetuoso em pedido de socorro (ela que já tinha tentado o suicídio em criança), Brandon chora descontroladamente e encolhe-se no chão, aterrado e desfeito pelo que as suas vidas se tornaram. 
Ainda há quem diga que Shame de vergonha tem pouco, como se o fardo de Brandon (e dos muitos Brandon que existem mundo fora) viesse de uma outra coisa. É a vergonha que o impossibilita de se expressar. O desprezo que sente por si mesmo tornou-se familiar, mas cravou-lhe o vazio na alma e incapacitou-o de criar intimidade com alguém. 
No final, o ciclo não se fecha. Brandon reencontra a mulher que lhe escapou no início, agora completamente disponível, e é utópico pensar que não terá agarrado a oportunidade de abismo.
Michael Fassbender tem um desempenho excepcional. Encarna um personagem tenso, afectivamente desligado, mecânico e intransponível, mas que acaba por se emocionar com a fragilidade da irmã (interpretada por Carey Mulligan), a única mulher que ama e que por isso o aprisiona. Sissy canta uma versão da New York, New York, que nos faz ficar (tão) pequenos no nosso assento: um grande plano da sua cara a dizer a Brandon "I want to be a part of it". É esse o único momento em que realmente falam, escutam, entendem.
Como a Morgana costuma dizer, cada plano de Shame é “poesia em silêncio”. Um drama profundamente humano sobre a discrepância latente entre amor, sexo, comunhão e família, explícito magnificamente na cena em que Brandon assiste à cópula de um casal contra o vidro de um apartamento, num tempo em que a fronteira entre privado e público, real e irreal se esbatem a passos largos, e vivemos todos juntos (n)um grande vazio.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Dogville (2003) Lars von Trier


Inserido na trilogia USA: Land of Opportunities, combina cinema e teatro Brechtiano, rompendo radicalmente com o cânone clássico. A história é relatada por um narrador omnisciente, colocando de lado a visão dos personagens. A acção decorre durante o período da Grande Depressão, pondo à prova o comportamento humano perante situações-limite.

Os residentes de Dogville eram gente boa e honesta que amava a sua aldeia, mas por alguma razão vivem num projecto de polis sem horizonte, onde o privado se mescla com o público, num olhar invasivo sobre os habitantes que nunca chegam a atingir o estatuto de verdadeiros cidadãos.
Thomas Edison Jr. – o oposto do inventor – passa os dias a vaguear imerso nos seus pensamentos, e encarna o ‘cargo’ de filósofo, reunindo os habitantes da polis em assembleias, com o intuito de lhes impor o seu ponto de vista, ao invés de lhes despoletar o espírito crítico. Ao considerar-se intelectualmente superior, o seu carácter não é bondoso, mas arrogante.
São aqui apresentados personagens-tipo, conformistas e desprovidas de autonomia, que precisam de um pastor que as guie. Há a preta que representa o papel de escrava - e que ainda tem uma filha deficiente motora - e há a branca que foge do mundo corrupto onde habitava, para conquistar autonomia e agir de acordo com o que a sua consciência dita. Grace escolhe o caminho da graça mas acaba por se afundar no pântano da natureza humana e animal, fazendo o antigo trabalho de Olívia parecer coisa de meninos.
Assim como o crash da bolsa desencadeou o declínio dos valores morais, também em Dogville esses valores desapareceram ou nunca existiram. Sendo uma carta fora do baralho, Grace é tratada como um objecto e perde toda a sua dignidade ao suportar o seu calvário, desculpabilizando os actos dos seus carcereiros pelo meio que os rodeia. Isso faz dela um ser ainda mais egoísta e arrogante que Thomas, como mais tarde o pai a faz ver. As suas tão respeitáveis boas intenções não chegaram para vencer as frentes de ataque da injustiça e do irracional, comandadas por um mundo perverso e contagioso onde até os anjos se metamorfoseiam em demónio com sede de vingança e convocam o apocalipse.
Afinal de contas, o homem bruto (Chuck) é que tinha razão - os homens são iguais em todo o lado, gananciosos como bichos - e as fotografias nos créditos finais mostram, caso a memória nos falhe, a quantidade de aldeias de cão que existem por esse mundo fora.
Sendo Grace uma deusa, encarna a tragédia como uma Medeia, e a sua vingança não é individual mas pelo bem da humanidade. Assim, queima aquele espaço para que dele não reste nada. Apenas o cão Moses sobrevive e é poupado por ter sido o único a mostrar-lhe os dentes assim que a viu.
Através da fragmentação do filme em capítulos, Trier convoca o espírito crítico, impossibilitando o envolvimento ou o choque. O próprio narrador ajuda a que a nossa percepção seja nítida, afastada e fria. O dinamarquês advoga uma arte comprometida, reflexiva e claramente posicionada, mostrando todo o desprezo que sente pela humanidade e levando ao extremo a perversidade humana. É impossível fugir à maldade e ninguém sai impune desta vida.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Le Havre, Aki Kaurismaki


O mais belo sonho carrega, como uma cicatriz, a sua diferença da realidade, a consciência de que o que ele concede é mera ilusão – Theodor Adorno sobre Amerika, o primeiro romance de Kafka, que conta a saga de um emigrante europeu nos Estados Unidos. Kaurismaki cita-o a bom tempo, evocando a problemática dos refugiados na Europa. A utopia de Le Havre reside em mostrar, sem dramatismos, o verso da moeda.

Herdeiro da tradição humanista e cómica de Chaplin e Renoir, do burlesco de Tati e do realismo poético de René Clair e Carné, o finlandês constrói uma espécie de conto de fadas num bairro de pescadores da cidade portuária de Le Havre, na Normandia, populado por pessoas de hábitos e rotinas atemporais, que se movimentam entre uma padaria, uma mercearia e um café. O tempo é o de uma outra vida e o ritmo é vagaroso, em claro protesto à velocidade da era digital.
Kaurismaki é um homem clássico que não gosta de arquitectura moderna. A sua câmara de filmar é de 1974 e pertenceu a Bergman. Com ela filma cenas longas e silenciosas sobre cenários teatrais, iluminados artificialmente. Vinys e vestidos vintage imprimem nostalgia à acção, e o único telemóvel que se vê pertence ao inspector, que transporta uma aura negra, mas não passa de um bom coração.
O nome dos personagens remete igualmente para o passado que o realizador homenageia. O protagonista Marcel Marx, levava uma vida boémia em Paris (André Wilms entrou em La vie de bohème, em 1992) e é agora um engraxador de olhar pesado, mas portador de grande optimismo e dignidade. A sua esposa, Arletty, sofre de cancro terminal e encarna o espírito e o pathos do proletariado francês dos inícios do século XX.
A trama lembra Casablanca. Marcel vê-se na obrigação moral de ajudar um refugiado africano a chegar a Londres, onde a mãe o espera. Para isso, conta com o apoio de todos os vizinhos (excepto um, porque há sempre uma ovelha negra em cada família) e juntos formam uma espécie de ‘nova internacional pós-comunista’, cunhada pela consciência social, fraternidade e união. Idrissa, o menino fugitivo, é um símbolo passivo que, com Arletty no hospital, cuida da lida da casa e de Marcel, um outro menino muito grande, que se orgulha da sua profissão por ser a “mais próxima das pessoas e a última a respeitar o “Sermão da Montanha””. Há uma ironia cruel, uma auto-paródia e um absurdo sem precedentes que vão desde o sinistro inspector Monet, que ajuda Marcel na sua missão, até à cena surreal com o ananás. No fim, o clássico happy end contraria os presságios de Arletty e mostra que os milagres acontecem, num mundo ao contrário.

Que se vanglorie este cinema, que põe o espectador activo perante a obra, sem artifícios ou adornos que o distraiam. Dotado de uma economia técnica espantosa, é um filme extremamente seco que nos faz reflectir sobre a ‘Europa sem fronteiras’, e apesar de toda a apropriação do passado, tem a frescura de um robalo acabado de pescar.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

DAYS OF HEAVEN (1978) MALICK


Terrence Malick é uma espécie de poeta visionário que trilha a relação entre duas naturezas: a orgânica e a natural. Não é de estranhar que tenha estudado filosofia em Harvard e escrito uma tese sobre a concepção do mundo. Em 69 traduziu o ensaio “The essence of reasons” (1929) de Martin Heidegger. Ainda nesse ano entrou na primeira turma a abrir no Centro para Estudos Fílmicos Avançados do American Film Institute, em Los Angeles. Os seus filmes clamam a urgência por recapturar a totalidade perdida do ser, um estado de integração idílico com o natural e ‘O Bem’ dentro e fora de nós. Natureza e Alma funcionam como elemento unificador, que caminha lado a lado com o mundo. A voz interior dos personagens fala frequentemente do Homem como um ser que partilha uma “grande alma” para “tocar a glória” onde “todas as coisas brilham”. É nestes termos que devemos entender a “calma” e “imortalidade” sugeridas na sua obra. Depois de Badlands, passou a congregrar representações visuais da natureza absolutamente esmagadoras, especialmente da luz filtrada através das árvores compridas, da relva a movimentar-se ao sabor do vento, do sol a iluminar a paisagem. É através dessas representações que o realizador expressa o seu reconhecimento do mundo como um paraíso perdido, entre a escuridão e a morte, mas aberto à redenção através do altruísmo individual. Em Days of Heaven, as imagens da natureza interligam-se com as acções dos protagonistas, ao mesmo tempo que fornecem um correlativo objectivo dos seus estados emocionais, antecipando-os, muitas das vezes. Passado no Texas, durante a 1ª Grande Guerra, o filme contém todos os elementos do western, sem que nenhum desempenhe um papel-padrão na narrativa. Existe a tarefa de trabalhar a terra, mas é realizada por trabalhadores migrantes. Há um herói "oficial" (o proprietário da terra) - que falha na sua tentativa de ‘purificação’ - e um herói fora-da-lei (Bill), que é punido, ao invés de resgatado. Há ainda uma voz-over, a de Linda, que não fornece o tipo de apropriação normalmente disponibilizado por esse dispositivo, devido à perspectiva peculiar e naïve que ela tem sobre os eventos, escusando-se mesmo a comentar cenas fulcrais da acção.




Casa junto da Linha Férrea, 1925. Hopper


O mundo de Cristina, 1948. Andrew Wyeth


O que me fascinou em Days of Heaven foram as ligações à pintura de Hopper e Andrew Wyeth. Já tínhamos visto Hitchcock a apropriar-se de uma das casas de Hopper n’ Os Pássaros, mas Malick leva essa reapropriação muito mais longe - e um ano a seguir é Woody Allen que dá vida à Queensborough Bridge, em Manhattan. Depois, a história e percurso dos 3 'irmãos' é esmagadora. Bill quer tudo e acaba por ficar sem nada, levando todos à desgraça e à ruína. Um filme muito diferente do que o antecedeu e sucedeu, onde Malick está nitidamente à procura de algo que levou 20 anos a desenvolver.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

OFFSIDE (2006), JAFAR PANAHI


Longe do drama de O Círculo (sobre a prisão das mulheres nas ruas de Teerão), o presente filme é uma cerejeira em flor para o cinema iraniano e para o mundo, desafiando a autoridade com uma frescura quase absurda. Para já, é filmado no próprio dia do jogo, quase em tempo real - o filme tem cerca de 90 minutos, tal como um jogo de futebol. Depois, os soldados estão tão confusos e desmoralizados como as mulheres, presos numa situação absurda e insolúvel. É uma obra que celebra a astúcia e tenacidade das suas heroínas e lança um olhar simpático nos dilemas éticos que enfrentam os seus carcereiros. Ambos se encontram atolados numa série infindável de discussões e negociações, onde quebrar uma regra sem sentido pode trazer graves repercussões.
As mulheres querem aceder ao mundo da excitação, do frenesim e da liberdade. São problemáticas e insistentes, mas ao mesmo tempo inocentes e detentoras de uma exposição lógica do pensamento que exclui qualquer traço de malícia. Lutam pela razão e as suas perguntas não cessam – constituem o sexo forte. A paixão, o desapontamento e a excitação em que vivem são esmagadores. Os soldados guardam-nas com confusão e incerteza, impotentes; chegam até a ser atenciosos e simpáticos, como irmãos benevolentes. Estas raparigas não são activistas a atacar o sistema, são apenas fãs de futebol e patriotas. Apesar de serem tratadas injustamente, nunca perdem o foco no jogo, no que agora lhes interessa. Não estão conscientemente a lutar pelos seus direitos - não têm essa noção - apenas querem ver o jogo. E há inúmeros actos de bondade de ambos os lados, vindos de pessoas boas que vivem em circunstâncias castradoras.
A abordagem única do realizador, fez dele um dos cineastas mais importantes e controversos do Irão até ao momento, onde a maioria dos seus filmes foi banida. Offside recebeu o Leão de Ouro em Berlim e fez parte da selecção oficial dos festivais de Nova Iorque e Toronto.

Aqui, o futebol não é o jogo, mas o veículo para se chegar à luta de géneros. Assim como as mulheres estão proibidas de assistir às partidas nos estádios, também a nós, espectadores, nos é vedado o que se passa em campo. Quem joga são as mulheres e quem dita as regras do jogo são os soldados que as encarceram entre pilares, arbitrando sob ordens superiores. O que estes acham é totalmente irrelevante e por isso nem sequer se cansam a formar uma opinião, corrompidos que estão pelo sistema.
A batalha entre estas duas equipas é emocionante e enternecedora. As jovens jogadoras são determinadas e inteligentes e fazem de tudo para conseguirem assistir ao jogo. Trajadas com roupas largas que encobrem as suas formas, disfarçam-se de homem para tentarem entrar no estádio. Uma delas rouba um uniforme do Exército e é descoberta quando está confortavelmente sentada no estandarte oficial. Sendo já uma reincidente, vem algemada e assim permanece todo o filme, personificando o soldado preso que também não pode assistir ao jogo. Outra, já depois de encurralada, diz ter muita urgência em utilizar as instalações sanitárias, e um soldado escolta-a até lá, não sem antes a fazer passar pela humilhação de andar com o poster de um jogador preso à cara, para não poder ver nada do que se passa dentro do estádio. No caminho, discutem futebol e expõem as suas ideias sobre algumas equipas. É esta a rapariga que passa pela maior humilhação, mas o seu esforço é recompensado, ao conseguir fugir das instalações sanitárias com a ajuda de alguns homens que cercam o soldado. No entanto, ela acaba por voltar ao seu posto, porque ficou a pensar no castigo que os soldados receberiam se tivesse escapado.


Estes adeptos parecem não ter nada contra a que as mulheres assistam ao jogo. Não as denunciam quando as descobrem e ainda as ajudam. Os próprios soldados não estão contra as mulheres, cumprem apenas ordens e só querem voltar para as suas famílias, sabendo que, se as perderem, ser-lhes-á retirado esse direito.
As mulheres estão proibidas de assistir aos jogos, sob pena de perderem a sua virtude e pureza perante a linguagem turbulenta. Considera-se imoral que vejam as pernas e braços desnudos dos homens no estádio. Certo é que não existe nenhuma lei que as proíba, e na prática sabemos que esta proibição se deve à forma como a mulher é vistas pelo regime - ser inferior, sem quaisquer direitos.  Mas aqui, as raparigas estão tão presas como os soldados, afastados das suas famílias para cumprirem um serviço militar em que nem sabem (nem se interessam por saber) se acreditam, encarando-o apenas como uma obrigação - e quem os pode censurar? No momento em que as prendem no quadrado, ficam automaticamente e igualmente presos por elas e a elas. É um jogo fascinante este que aqui se joga, entre duas equipas que detêm a outra prisioneira: as mulheres estão furiosas com as regras mesquinhas que as impedem de ver o jogo que amam, e os soldados recrutas estão relutantes: querem assistir à partida, mas não podem porque têm de as vigiar.
Fora de campo dá-se o jogo que nenhum consegue ver. É a pedido das raparigas que um dos guardas começa a relatar os passes que vislumbra por uma entrada do estádio. Os relatos são verdadeiramente entusiastas e ambos festejam o facto do Irão não estar a perder no final da 1ª parte. É isso que o futebol tem de encantador: mesmo nas mais desesperadas circunstâncias, num ambiente de segregação, homens e mulheres - já não importa - festejam igualmente e sem preconceitos por uma causa comum. Talvez por isso os homens estejam a ser tão abertos à presença das mulheres, porque não é um dia igual aos outros, é o dia em que o Irão se pode classificar para o Mundial de 2006. 



Uma das raparigas, a primeira que aparece, é claramente uma novata e está fora de jogo desde o início, ao ser extorquida por um vendedor ilegal e ao deixar o soldado que a escolta fazer uma chamada do seu telemóvel - o mesmo que ela não pode usar. No fim, sabemos que nunca antes tinha estado num estádio e que foi prestar homenagem ao amigo que morreu meses antes numa partida e que se estivesse vivo, iria ver este jogo. Existem várias cenas hilariantes, mas outras bastante sérias (a evocação da morte de sete crianças) que dão aos sete foguetes, que mais tarde a menina leva na mão, um significado profundo. Os minutos finais do jogo são mais que gratificantes e remetem-nos para o sentido de fraternidade e união que existe no Irão. Todos rezam juntos pelo seu país. Os guardas beijam-se e são puxados para dançar, as meninas festejam com o rapaz e inundam as ruas com gritos e canções. Estas cenas de celebração foram filmadas em tempo real, o que impõe ao filme uma singular autenticidade. Ver o quanto esta vitória representa para o povo iraniano é incrivelmente tocante.


Em Offside todos são amados por igual – os soldados e as mulheres indomáveis. Acima de tudo, Panahi ama as querelas que se alastram no caótico Teerão, onde quase tudo parece possível quando se negoceia e argumenta com fervor. O realizador passou a sua obra a mostrar pessoas enclausuradas. Aqui, as raparigas estão imobilizadas num rectângulo de segurança no exterior, mas no fim há a libertação dessa sensação e a população comemora. Panahi está a celebrar o seu próprio sucesso, uma vez que não teve permissão oficial para filmar Offside. A vitória do Irão não mudará nada, mas o seu filme pode mudar, pode chegar a muita gente. Em países com forte repressão político-social, o cinema reveste-se de um carácter de extrema importância.

sábado, 21 de janeiro de 2012

L'APOLLONIDE


Quinta longa-metragem de Bertrand Bonello, com Céline Sallette (Un été brûlant), Hafsia Herzi (O segredo de um cuscuz) e Alice Barnole numa representação bastante bem conseguida.
Salvas para a fotografia e mise-en-scène irrepreensíveis.
Errou ao expor sem pudor a brutalidade de que o filme tenta viver um pouco (e por isso a faz render). Não era necessário. Por vezes o que não se mostra tem bastante mais força. Mas conseguiu, de facto, fazer-me cerrar as mandíbulas durante uma semana.
Análise integral aqui.